segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Um soco no estômago!

O editor do Jornal de Letras, José Rodrigues da Silva, faleceu, na madrugada deste sábado, vítima de doença prolongada, informou um jornalista desta publicação. Segundo Manuel Halpern, o editor estava doente com cancro há algum tempo. Curioso que quando Rodrigues da Silva anunciou ao Mundo de que padecia deste mal, fê-lo com a mesma mestria que já o havia feito Lobo Antunes. Eles que tantas vezes se cruzaram entre as artes e as letras. Que se tratavam por tu, como comparsas do verbo. Eu testemunhei isso, essa sequência de prosa que alguém, um dia, teve a felicidade de transformar em entrevista publicável. Eu li. E lamento agora este desfecho.

Esta foi a forma como Rodrigues da Silva se manifestou...

Quando eu era puto, na nossa rua o Sr. José era o Sr. José da Mercearia, que era do Benfica, tinha um filho que era o Rogério, que era meu colega de carteira na escola da D. Alice, que... E o Sr. Silva era o meu pai, que tinha um filho que era eu, que era o Zé Manel, que durante 68 anos Zé Manel continuou a ser na declinação de amigos & afectos. E esse filho do Sr. Silva, esse filho que era eu, só Silva foi uma vez, e essa vez foi na Guerra, por onde andou camuflado de alferes miliciano Silva, atirador especial de Infantaria, «pronto, meu capitão», «pronto, meu coronel», «pronto, meu general», «pronto, ares condicionados, gabinetes, cervejolas, mandantes e cagarolas», pronto eu, carne no mato para canhão, sozinho com o meu pelotão. Mas…
Mas, porém, todavia, contudo, quem houvera de dizer, safou-se afinal o Silva, alferes que era eu, e, quando da infantaria da tropa transitou para a infantaria do jornalismo (há 40 anos já; como é possível!!!), ganhou até um nome artístico: Rodrigues da Silva. Santo-e-senha com que, entre muita outra malta, sobre neurologias, psiquiatrias e vozes, entrevistou o Lobo Antunes (João), o Sampaio (Daniel), o Andrea (Mário), qualquer deles naquele hospital. Pelo qual – al, al, al, – entrou sempre pela porta grande, esquerda alta, para, horas depois, pela baixíssima esquerda, pequeníssima porta, sair, porque, enfim, mesmo alheia e de passagem, a doença faz-nos mingar a alma ou coisa assim.
Até que um dia és tu que mingas, não apenas na coisa assim da alma, mas também no coiso já muito assado do corpo, que, com gozo e respectivo proveito, sempre deste ao manifesto. E és tu que mingas, porque há aquele nódulo que… Que a radiografia detectou, a TAC confirmou, a endoscopia revelou, a biopsia te coisou, e o Zé Manel para os mais íntimos, o Rodrigues da Silva no palco das artes & ofícios, de repente ­– consoante a recepcionista, a enfermeira, o pneumologista –, passou a ser o Sr. José. Ou o Sr. Silva.
E tu sentes que o filho da puta do cancro te minga até a identidade. E que, por detrás do que passaste a ser, porque assim te passaram a chamar, ele te reduziu a um nódulo de ti mesmo. E só então – Sr. José, Sr. Silva – é que percebes que começaste a desnascer…

1 comentário:

Santiagando disse...

Escrevia muito bem, o senhor!